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É preciso brincar para afirmar a vida - Lydia Hortélio

Ela é uma das maiores especialistas em cultura da criança no Brasil. Correu o mundo para descobrir como lidar com este vasto universo, mas foi em sua própria terra, no sertão baiano, que encontrou aplicação para o que aprendeu.

 

 Entrevista com Lydia Hortélio publicada em outubro de 2008 pelo site http://www.almanaquebrasil.com.br/personalidades-cultura/6904-e-preciso-brincar-para-afirmar-a-vida.html

 

Ela é uma das maiores especialistas em cultura da criança no Brasil. Correu o mundo para descobrir como lidar com este vasto universo, mas foi em sua própria terra, no sertão baiano, que encontrou aplicação para o que aprendeu. E entendeu que tinha muito ainda a descobrir. Além de desenvolver uma contínua investigação das cantigas, brincadeiras e brinquedos do País, vive de dar aulas e palestras sobre o assunto.

 Lançou dois CDs considerados referência: Abra a Roda – Tin dô lê lê e Ô Bela Alice… Para Lydia, se o mundo ainda tem solução, ela se dará pela infância. “A grande revolução acontecerá por aí.”  E para quem duvida, ela emenda: “Isso não é impossível, nem difícil, porque a infância está guardada dentro de cada um”.

 De onde vem essa sua aproximação com a cultura da infância?

Acho que começou mesmo quando eu era criança, no sertão da Bahia. Eu brinquei muito. Nós tínhamos um quintal com 25 mangueiras e ali brincávamos de tudo. Naquela época, na escola primária, também se brincava muito. Não sei muito bem como vim a estudar música... O fato é que fui à Europa para estudar piano na Alemanha. Lembro que os presentes que levei eram todos brinquedinhos que comprava dos fazedores de brinquedos populares. Eu tinha aquilo comigo.

 Em que ano você foi para a Europa?

Em 1961. Estudei primeiro na Escola Superior de Música de Friburgo, depois me mudei para a Musique Academie, numa pequena cidade ao norte da Alemanha que tem uma escola de música muito famosa. No fim dos meus estudos, estava em crise com a música que eu fazia e tinha muita saudade do Brasil. Tudo o que sempre quis na vida era tocar piano. E, de repente, não era mais isso que eu queria. Então voltei para o Brasil e resolvi pesquisar música. Percebi que toda a educação musical daqui passava pelos métodos europeus. Eu já intuía que não podia ser assim, que tinha que se saber como é a música do Brasil para adivinhar como seria a maneira de educar segundo os modelos da música brasileira. Então comecei por mim mesma a ir para o sertão, para a cidade de onde eu venho, para pesquisar. E, como me interessei por etnomusicologia, voltei para a Europa, dessa vez para Berna, na Suíça.

 E por que ir para a Suíça para estudar música brasileira?

Lá havia o Sándor Veress, um húngaro que tinha sido aluno do Bartók, que, junto a Kodály, no começo do século 20, dedicou-se a uma extensa pesquisa musical da cultura húngara. Na esteira deles vieram artistas plásticos e literatos que fizeram o mesmo em suas áreas. A Hungria é o único país no mundo que levantou significativamente a sua cultura popular. Passei alguns semestres com Sándor Veress, conhecendo o que tinha sido feito na Hungria. Havia paralelos com o Brasil, mas acabei percebendo que não havia resposta para muitas coisas que eu me perguntava, como por que toda música no Nordeste tem duas vozes. Comecei a compreender que nós, brasileiros, é que temos que dar conta do Brasil.

 E como você chegou à música da infância?

Foi ainda nos meus contatos com Bartók e Kodály. Até então eu me dedicava mais à música de trabalho e à música de culto. A partir dos brinquedos cantados eu descobri que existe uma cultura da criança. Na educação musical se pinça a cantiga para trabalhar com os meninos. Mas a cantiga, o brinquedo, é uma coisa múltipla. É um organismo vivo que, se você tira uma parte, deixa de funcionar. Um exemplo clássico é o nosso Atirei o Pau no Gato, hino nacional dos meninos do Brasil. Ele tem um texto literário, que são as palavras, tem uma cantiga e uma movimentação que é própria daquele brinquedo. Quer dizer, tem palavra, tem música, tem movimento e tem o convívio das crianças. Depois que fiz esta descoberta, comecei a me esforçar para lembrar dos brinquedos de minha infância. Quando me esquecia, escrevia para a minha irmã, para as minhas amigas. Assim comecei a levantar a minha infância, a partir dos brinquedos que eram cantados.

 Ainda hoje você caça estes vestígios de infância?

Em todo lugar que eu vou estou sempre munida de um gravadorzinho e de uma máquina fotográfica. Saio perguntando. Nos cursos que dou, os alunos têm como tarefa levantar a sua própria infância. Tenho na minha casa um monte de cadernos reunindo isso tudo. Dá para encher um quarto. Preciso encontrar um hora para aproveitar isso e devolver ao Brasil essas memórias de tanta gente e das suas infâncias, uma coisa que vem se perdendo.

 E por que estas memórias estão se perdendo?

Desde que se criou a televisão foi sendo desmontado paulatinamente o convívio das crianças entre elas mesmas. Às vezes até há esse convívio, mas é na frente da televisão. Não existe um intercurso de criança com criança. Isso foi desmanchado, apagado. Ainda é nas escolas, de certa forma, e no curto espaço de tempo do recreio, que elas brincam entre elas um pouquinho. As meninas, com seus brinquedos de mão, mais do que os meninos. Mas o vasto repertório da cultura da infância no Brasil está encoberto, esquecido. Então o meu trabalho, o meu interesse, a minha alegria, é ir atrás dessas coisas.

 Você sistematizou ao menos as lembranças da sua terra?

Em 2005 ganhei uma bolsa da Fundação Vitae para que eu pudesse passar o ano todo indo constantemente à minha cidade para fazer um levantamento. A pesquisa se chama O Som da Infância em Serrinha – Cem anos de música tradicional da infância em um município do sertão da Bahia. Um ano é pouco, mas foi significativo. Reuni quase 600 brinquedos cantados. Minha tia, que na época tinha 99 anos, me ajudou com 132 cantigas... A infância é atemporal. Hoje, com 102 anos, minha tia se esquece de uma porção de coisas, mas é só eu começar a cantar uma cantiga de sua infância que ela canta junto.

 No campo se brinca mais do que na cidade?

Nas comunidades rurais em que pesquiso, os homens velhos brincam como se fossem crianças. As mulheres de 70, 80 anos pulam na roda parecendo meninas de 7. As mulheres mais jovens também brincam. Vão carregando os filhos nos braços e cantando na roda. Acho que o fato de a gente ter se afastado da natureza e deixado de viver em comunidade estraçalhou o homem. E, ao mesmo tempo, ele esqueceu, perdeu sua infância. Enquanto isso, o pessoal que está lá no mato, que tem suas formas de trabalho coletivas, continua em contato com isso... Às vezes, ao vê-los em ação, você não sabe se estão trabalhando ou brincando...

 E qual a importância de preservar a infância?

A infância é algo precioso. Eu acho que, se a humanidade tem futuro, ela vai retomar por aí, pela infância. E isso não é impossível, nem difícil, porque a infância está guardada dentro de cada um. Eu acho que a grande revolução está aí. Fico muito feliz de ver que o Brasil tem tudo pra isso, tem muita cultura popular ainda. A cultura popular é uma segunda infância. Um alemão extraordinário, Friedrich Schiller, diz que o homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem. O brincar é algo espiritual. E não estou falando de religião, não. Não é nada disso. É algo ainda mais profundo, que tem a ver com a alma do homem.

 Nós, brasileiros, brincamos de um jeito diferente?

Acho que a relação com a brincadeira é comum a todos os povos. Eu sinto e vejo nas minhas observações que o ser humano ainda novo tem necessidades de crescimento, e que os brinquedos são a manifestação, a configuração dessas necessidades. A essas configurações eu chamo de cultura da criança. Por isso é que é preocupante as crianças não estarem brincando. Seria ótimo se a gente tivesse uma documentação de tudo o que todos os meninos do mundo brincaram, porque aí teríamos uma imagem perfeita do que é o ser humano.

 É possível fazer esta leitura?

Nem tudo se preservou, evidentemente. Mas há sinais o suficiente. Pode-se dizer que os meninos continuam reinventando os mesmos brinquedos e inventando outros, de acordo com as características de cada lugar. O Brasil existe há 500 anos, e os índios aqui já tinham uma série de brincadeiras. Hoje, com toda a evolução tecnológica, existem outros objetos, outros materiais que não havia antes. E os meninos continuam manipulando e transformando seus brinquedos... Na mão do menino acontece o milagre da transformação. Aquele brinquedo passa a ter significado para ele, para a sua própria cultura. Este é o comportamento humano por excelência. Tanto é que, mesmo morando empilhada em apartamentos, quando você sai com a criança para a natureza, ela se comporta diferente.Você pensa que ela só gosta de videogame? Não é verdade. A natureza tem a força, tem o poder de puxar da criança o movimento que está contido.

 As escolas parecem querer ocupar o tempo das crianças...

Todo o sistema armado para recebê-las é antiquado. Mesmo as escolas mais avançadas estão defasadas em relação às descobertas mais recentes da ciência. Ninguém hoje aguenta ficar quatro horas sentado ouvindo um assunto que não é do seu interesse. Mas tem gente preocupada com isso. Em São Paulo, por exemplo, há muita gente despertada para este tema. Que brincar é preciso. Que levar a criança a brincar é uma tarefa inadiável. As escolas deviam tomar consciência disso, mas os recreios foram encurtados porque cada vez mais a preocupação é com o conteúdo. É a mente, a herança cartesiana. E o Brasil que dança está sendo esquecido. Acho que viemos ao mundo para dançar, para brincar. Dizendo isso não estou defendendo que não viemos para aprender toda a herança cultural do mundo. Mas isso precisa ser revisto. Antes de mais nada, é preciso ser feliz. É preciso brincar para afirmar a vida.

 Deve-se brincar para aprender?

Deve-se brincar para ser feliz. Se você quiser brincar para aprender já não é mais brinquedo. Porque o brinquedo tem um fim nele mesmo. Bola pra quê? Pra brincar de bola. Você brinca de peteca pra quê? Pra brincar de peteca, para passar pela experiência múltipla e extraordinária que é brincar de peteca. E por que brincar de roda? Porque é uma maravilha: mão na mão, esquecer quem é você, embarcar no sonho daquela hora... Brincar é isso aí. Mas há quem queira transformar o brinquedo num “brinquedo pedagógico”... Existem tentativas nesse sentido, mas não dá, porque há uma incongruência.

 Mas isso não significa que as crianças não estejam aprendendo ao brincar...

Aí é que está. Estão aprendendo, e muito mais do que a gente consegue ver. O brinquedo é múltiplo. Ele mexe na alma. Na hora em que a gente compreende isso, não tem mais medo de dizer que está brincando. Criou-se até uma antipatia ao brinquedo: “Menino, você já tá grande demais pra brincar disso!”. Como se, a partir de certa idade, só se pudesse pensar... Só se aprende liberdade brincando. Brincar é o maior exercício de liberdade que a gente pode ter.

 Como você vê a hegemonia desses brinquedos importados, em sua maioria, da China?

Acontece muito de a mãe – depois de trabalhar o dia inteiro, e com peso na consciência por não estar assistindo seu filho como gostaria – passar no supermercado e comprar um brinquedo desses. O menino fica alegre naquela hora. Depois o brinquedo não tem muito significado, e a criança deixa de brincar com ele. Para piorar, um dia a mãe ou o pai acha o brinquedo jogado atrás da porta e diz: “Não lhe dou mais nada!”. Há pouca consciência do que realmente tem valor lúdico. Às vezes acontece o milagre na mão do menino: ele transforma aquele brinquedo numa outra coisa. Eu vejo muito isso com meus netos lá em casa. Recebem de aniversário uma porção de coisas que, pelo meu gosto, eu jogava fora. Mas, quando vejo, eles estão fazendo daquilo uma outra coisa. Não há na escola, e tampouco nos ministérios e secretarias de educação, essa consciência. Na formação do professor ainda não existe uma compreensão do significado e da importância da cultura da criança.

 Apesar disso, você é otimista em relação ao futuro da educação, ou melhor, das crianças?

Sinto que as coisas estão prestes a se transformar. Nas aulas e palestras que dou, encontro educadores que se sentem aprisionados num sistema de educação que não leva em conta o sensível, a inteligência sensível, a inteligência do corpo. Hoje, em Minas Gerais, há políticas públicas que nasceram nesse sentido. Lá esse movimento é significativo: tem centros culturais na periferia de Belo Horizonte, tem jogos que brincam com as crianças, sempre com uma consciência incrível do significado disso tudo. Aqui em São Paulo há o curso do Instituto Brincante e outras tantas iniciativas. Estou vendo que as coisas estão mais adiante. Acho que é por isso também que continuo trabalhando.

 Você ainda brinca, ou só profissionalmente?

Brinco... Brinco, sim. Porque isso traz alegria, traz saúde. Não que eu esteja brincando por aí de Atirei o Pau no Gato... Você pode imaginar que eu já estou há muito tempo em cima deste mundo. Tenho 75 anos! Então, a carga de mundo é imensa. É uma conquista ainda conseguir brincar, porque foi muita escola, muita universidade... A espontaneidade diminui, e é essa a força que a criança tem. Mas eu vou lhe dizer: a vida está aí pra gente reconquistar, e eu estou aí pra isso.

 


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